George Orwell ensinou a todos nós que a linguagem pode ser uma arma do conhecimento mas também pode servir à mentira. Pode encobrir a realidade e também pode desvendá-la.
Vejamos, por exemplo, por onde caminham as conclusões do julgamento do mensalão no STF. Não vou discutir as sentenças proferidas. Quero discutir a interpretação.
A principal é dizer o seguinte: está provado que houve compra de votos e que o mensalão não era, portanto, caixa 2 de campanha. Parece haver uma relação de causa entre uma coisa e outra.
Essa é a teoria desde a denúncia inicial, em 2006. Mas há um problema elementar neste raciocínio.
Não há nexo entre as coisas. Dinheiro de caixa 2 é dinheiro não registrado, sem origem declarada. Sua origem pode ser uma atividade criminosa, como tráfico de drogas, ou propina conseguida em negociações escusas com o governo.
O dentista que dá desconto no tratamento, mas não dá recibo inclui-se no mundo imenso do Caixa 2.
O mesmo acontece com uma empresa legal, que dá emprego a milhares de pessoas – e não cumpre suas obrigações com o fisco. Muitas empresas privadas têm um caixa 2 especialmente reservado para pagamentos por fora. Isso inclui, como nós sabemos, as contribuições de campanha.
A CPMI dos correios demonstrou que grandes empresas privadas deixaram mais de R$ 200 milhões com o esquema de Marcos Valério, entre 2000 e 2005. Nenhuma foi levada ao julgamento agora em pauta, aliás.
Esse dinheiro, muitas vezes, era limpo e declarado. Outras vezes, não.
Isso não muda a natureza do problema.
Quando falou que movimentava recursos “não declarados” Delúbio contou uma parte da história. Tentou amenizar sua pena, o que eu acho compreensível, já que numa democracia ninguém é obrigado a se auto-incriminar, como a gente aprende em seriado americano quando a policia interroga um suspeito, certo?
Caixa 2 tem a ver com a origem. Não explica a finalidade do pagamento. Quem fala em “compra de consciências” está falando em finalidade, certo? Embora alguns ministros tenham tido que isso era irrelevante, eu acho que tem importância, sim.
Está lá, na denúncia. Por que não tem importância?
É um ponto central do problema, quando se recorda nossa legislação eleitoral, tão favorável ao poder econômico privado.
Muito antes de Orwell denunciar o stalinismo, grande assunto de toda sua obra, adivinhar o que anda pela “consciência” dos homens intriga os filósofos e os políticos.
No auge do obscurantismo católico, até as fogueiras da inquisição ardiam para que os infiéis confessassem os pecados que lhe eram atribuídos – e não reconheciam como tais. Não comparo o julgamento à Inquisição. Mas aquela experiência terrível — e tantas outras — mostra que a consciência humana é matéria muito delicada.
Às vezes tenho a impressão de que provas parecem não importar muito nos dias de hoje, mas eu acho que falar em “compra de votos” implica em provar que a pessoa tinha uma convicção e mudou de ideia porque recebeu dinheiro no bolso.
Sei que isso pode acontecer. Quantos exemplos de carreirismo nós encontramos no cara que mente para subir na empresa, no puxa-saco que sorri o tempo inteiro para ter aumento e assim por diante?
Seria bobo pensar que não há pessoas assim na política. Mais. O inquérito mostrou até que o dinheiro do mensalão foi usado para pagar indenização à namorada de um político falecido. Tenho certeza de que muitos políticos fizeram desvios – quem sabe muito piores do que este.
Quem olhar as votações ocorridas no período – 2003 e 2004 — em que teria ocorrido a “compra de votos” ficará espantado em função de uma coisa. Os calendários dos pagamentos não são conclusivos. Aquilo que o ministério público alega um levantamento da defesa desmente. Na melhor das hipóteses, é um empate de provas. Mas há um elemento maior e mais decisivo.
Naquele momento, o governo Lula tinha aliados à direita e fazia uma política que, sob este critério, também estava à direita. A esquerda do PT e mesmo fora dele não cansava de denunciar o que ocorria. O PSOL preparava seu racha e, dentro do governo, personalidades de pensamento semelhante começavam a esvaziar gavetas.
O Planalto cumpria parte da agenda do PSDB, do PP, do PTB e assim por diante. Aprovou a reforma da previdência – que era uma continuação do governo FHC – e outras medidas no gênero. O primeiro ato público do governo Lula foi um protesto de 25.000 servidores na Esplanada.
O governo pagava direitinho as contas de um empréstimo no FMI e governava com os juros no céu. Achava que esse era um pacto necessário para assegurar as condições mínimas de governar, após o ambiente de colapso e pânico que o país atravessou em 2002.
Banqueiros internacionais elogiavam a política econômica.
Você acha que o Roberto Jefferson precisava de R$ 4 milhões no bolso para votar a favor de mudanças na Previdência? Ou o PL? Ou o PP?
Eu acho que não. Eles dizem que não. Eles tinham embarcado no projeto Lula, como o PL fizera antes, ao garantir até a cadeira de vice-presidente. Falaram isso ao serem ouvidos na Polícia Federal. Falaram que iriam usar o dinheiro para a atividade mais importante de todo político: preparar a próxima campanha e pagar as contas anteriores.
E se você acha que isso é feio, subdesenvolvido, cínico, saiba que está enganado. Até na Alemanha esses acordos são feitos. Os verdes deixaram a ultraesquerda para assumir um governismo perpétuo. Democratas de centro e republicanos idem adoram trocar postos no primeiro escalão de presidentes do lado oposto, nos EUA.
Se você olhar os petistas que receberam dinheiro do esquema, irá reparar que eles pertenciam ao Campo Majoritário, que sustentava a política do governo, mesmo a contragosto às vezes. (Toda luta política depois do jardim de infância inclui momentos de contragosto, certo?).
Isso acontecia porque o financiamento de Marcos Valério e Delúbio Soares não se destinava a alimentar uma “organização criminosa,” como os bandidos que roubam automóvel ou assaltam residências.
Não há como justificar nenhum desvio, roubo ou coisa parecida. Mas não é preciso aplicar a tecnologia tão bem explicada por Orwell para acreditar que a mentira virou verdade.
A menos, claro, que você pretenda tratar a política como crime. A vantagem de quem faz isso é atingir objetivos políticos enquanto se esconde atrás da ética. A desvantagem para os outros é fazer o papel de bobo.
Por mais que você goste de comparar a política brasileira a uma quitanda de bairro, não se iluda. Todos partidos têm seus compromissos, prioridades e assim por diante. Caso contrário, não sobrevivem.
O PP, o PL e outros se aliaram ao governo Lula depois da Carta ao Povo Brasileiro, que levou muitos petistas para debaixo do tapete, não é mesmo?
Os partidos podem ser e são muito parecidos pelos escândalos e eu acho que já discuti isso aqui algumas vezes. (O mais divertido dessa discussão é o escandalômetro. Dados do TSE mostram que o PSDB é o campeão nacional de fichas sujas enquanto PMDB, DEM, PP vêm depois. O PT fica em 8O lugar, o que é lamentável mas não parece compatível com a fama atual, quem sabe mais um efeito George Orwell – ou seria melhor falar em Goebells?)
Mas o esquema tinha um fundo político, alimentava a política e era alimentado por ela.
É difícil negar que ao longo do tempo governos de partidos diferentes produzem resultados diferentes, como as pesquisas de distribuição de renda, desemprego e redução da miséria não se cansam de demonstrar. (Não vamos nos estender muito sobre isso, é claro...).
Estas políticas se mostraram tão diferentes que hoje em dia os mais pobres costumam votar de um jeito e os mais ricos, de outro.
Veja que aí também há quem fale em “compra de votos”, que seria a versão popular da compra de “consciências”.
É o mesmo raciocínio. No Congresso, a compra de “consciência.” No povão, a compra de votos. Num caso, o “mensalão”. Em outro, o Bolsa Família, as políticas de estimulo ao crescimento para impedir a queda no emprego, o salário mínimo…
Deixando de lado, claro, a troca de voto por dentadura e por um par de sapatos, que é expressão da miséria política em sua face mais degradante, eu acho é preciso prestar atenção nessa visão.
É uma espécie de racismo social. Explico. Ninguém fala em compra de votos quando um governo conservador dá um pontapé nos juros, enriquece a clientela do mercado financeiro – que fará o possível para assegurar a manutenção dessa política no pleito seguinte.
Vozes graves e olhares sisudos chegam a elogiar o massacre social que estamos assistindo na Europa, hoje em dia – da mesma foram que apoiaram a sangria dos países do Terceiro Mundo décadas atrás. Considera-se que essa é uma visão legítima no debate econômico.
Mas quando um governo procura beneficiar os interesses dos pobres e indefesos, está fazendo compra de votos. Curioso, não?
E é mais curioso ainda quando alguém tem o mau gosto de lembrar que outro escândalo, igualzinho, e mais antigo, foi conveniente retirado das manchetes e da televisão.
Estou falando, claro, do mensalão tucano que, em nova homenagem a Orwell, é chamado de “mineiro”, o que é uma ofensa a um estado inteiro. O mensalão, vá lá, PSDB-MG, ficou para as calendas, embora seja quatro anos mais antigo.
Considerando as eleições para prefeito, neste domingo, e as sentenças que nos aguardam, é impossível deixar de reparar na coincidência e deixar de perguntar: quem está “comprando consciências”?
do blog DoLaDoDeLá
do blog DoLaDoDeLá
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