Por João Marcelo Intini
Da Agência Repórter Brasil
Da Agência Repórter Brasil
No lugar que havia mata, hoje há perseguição
grileiro mata posseiro só prá lhe roubar seu chão.
Castanheiro, seringueiro já viraram até peão afora
os que já morreram como ave-de-arribação. Zé de
Nata tá de prova, naquele lugar tem cova gente
enterrada no chão. (Vital Farias)
Há tempos que a música de Vital Farias foi composta. Em 1982, o Brasil clamava pelo fim da ditadura militar, a sociedade efervescia desejando a volta do regime democrático, movimentos se organizavam em todos os locais. Um metalúrgico liderava o movimento sindical, as lutas nas portas das fábricas ganhavam manchetes no mundo todo. Um novo ciclo se abria na história do Brasil. A luta de classes avançava e conquistava novos direitos sociais e trabalhistas.
O modelo de desenvolvimento econômico acentuava a dependência do financiamento externo. Após duas crises do petróleo, na década de 1970, o país estava à beira de um colapso financeiro e precisava urgentemente de recursos para pagar a importação de combustíveis. O Brasil foi salvo por um cheque do Fundo Monetário Internacional. O presidente da República, general Figueiredo, cavalgava ao lado de Ronald Reagan, exibindo os cavalos bem cuidados, às vistas de uma população sufocada pela ausência de tudo.
Passados 30 anos, uma nova geração de brasileiros emerge e se depara com um país de oportunidades, pujante na sua economia, diverso na sua culturalidade, sexta economia mundial, provando um ciclo longevo de vivencia democrática, ainda que continuemos a combater mazelas e diferenças sociais abissais.
Mas essa introdução poderia indicar que viramos a página de um período de exceção, de violência, de truculência, para um ciclo de inovação social, de reorganização do Estado brasileiro, de novos valores culturais e sociais. Um metalúrgico acabara de encerrar um período de oito anos à frente da Presidência da República e pela primeira vez na história uma mulher era conduzida ao posto máximo.
Muitos setores da sociedade brasileira se reinventaram, abriram canais de conexão com o mundo, interagiram na tecnologia, na comunicação, na economia que se “planetarizou” rapidamente. Temos outra sociedade, em relação a 1982. Estamos por erradicar a pobreza extrema, caminhamos a pleno emprego, o salário mínimo contribui para a distribuição de riqueza e da mudança das classes sociais. Não temos mais a “pirâmide social”, que foi substituída por um “losango” de milhões de brasileiros ingressantes na classe média.
Concentração
Mas uma contradição grotesca persiste: a alta concentração de terra no Brasil. Uma das maiores do mundo: 93% das propriedades ocupam apenas 17% da área rural e 1,6 % das propriedades ocupa 52% das áreas. Se o empresariado industrial e urbano se modernizou, os empregadores rurais permanecem sentados ao lado do presidente Figueiredo, clamando pela proteção de suas famílias, propriedades e tradições, absolutamente inspiradas nas oligarquias rurais.
Parece que o tempo não passou para alguns.
As conquistas trabalhistas efetivadas na Constituição de 1988, os tratados internacionais que o Brasil ratificou, as inovações nas leis trabalhistas e o fortalecimento das organizações sindicais dos trabalhadores parecem não ter sido incorporadas na identidade política desse segmento rural. Acontece que, à luz do sistema eleitoral brasileiro, que concentra o poder econômico e político, esses empregadores rurais conservadores garantem sua representação política no Congresso Nacional, através do que comumente denominamos de bancada ruralista.
Estabelece-se a ligação ideológica dos herdeiros das oligarquias rurais com os parlamentares ruralistas, aproximando a dominação política e territorial, histórica e patriarcal, com o plenário da Câmara dos Deputados. Organizados na Frente Parlamentar da Agropecuária, defendem os seus direitos de propriedade e avançam sobre os direitos alheios, principalmente dos indígenas, quilombolas e trabalhadores assalariados, como se nada bastasse para saciar o desejo por riquezas e exploração inescrupulosa dos recursos naturais. É o jogo do vale tudo no rural, orgulhosamente sustentado nos resultados da balança comercial brasileira, ancorado na primariedade dos produtos, na soja transgênica, na exploração do solo brasileiro.
E as mudanças na sociedade brasileira, passam incólumes? O que pensam os ruralistas sobre este novo Brasil?
Estabelece-se a ligação ideológica dos herdeiros das oligarquias rurais com os parlamentares ruralistas, aproximando a dominação política e territorial, histórica e patriarcal, com o plenário da Câmara dos Deputados
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O deputado Nelson Marquezelli, do PTB paulista, disse o seguinte durante uma audiência pública na Comissão Parlamentar de Inquérito do Trabalho Escravo1:
“É um enfrentamento que nós vamos ter, porque uma pessoa que tem uma cor mais queimada que a outra garante uma vaga na universidade. Já começa por aí, não é mais pela seleção de inteligência, dedicação do cara que passa horas e horas debruçado em cima de um livro. Não, basta ele ter uma corrente de uma pele mais escura. E há até uma disputa: já tem muita gente que queria ser branco, agora tem muita gente que quer ser mais do outro lado para poder receber um dom melhor na sociedade brasileira.”(Audiência pública realizada no dia 16/5/2012, na Câmara dos Deputados)
Casa Grande
Não se trata de miopia social, mas da defesa inconteste dos seus princípios, pela sua percepção da defesa do seu espaço social e territorial. A sociedade que emerge não cabe no horizonte ruralista, pois implica em convivência, em distribuição e democratização de direitos. A Casa Grande persiste, embora agora tenha internet e luz elétrica. Na Casa Grande do período colonial da história do Brasil habitavam o poder econômico e o poder político e lá se organizavam as atividades de caráter público, as atividades de trabalho e até mesmo as religiosas. O senhor do engenho era o senhor absoluto.
As práticas de clientelismo, o favor como instrumento da relação de desigualdade, geradora da dependência entre homens e mulheres livres, porém pobres, consolidou as práticas sociais da época passada2.
O florescimento do coronelismo já no período republicano da nossa história amplia a Casa Grande para além da propriedade rural, agora dominando municípios rurais, circunscrevendo o espaço público aos interesses dos coronéis. A incursão do poder privado sobre o domínio político e do espaço público se consolida3.
Ao final do século XIX, favorecidos pela presença precária do poder federal nos municípios do interior, os coronéis eram a única instituição viável de poder e sua ascendência derivava, naturalmente, de sua condição de proprietário rural4. É fato que o coronelismo perdeu parte de sua importância política no final da década de 1970, até porque o Estado interventor agia através das práticas autoritárias, centralizadoras e de manutenção do clientelismo.
Voltando ao ideário ruralista, nos parece confirmada a sensação de que o país e a sociedade não se modificaram ao longo de todas essas décadas. O deputado federal Asdrubal Bentes, do PMDB paraense, parece desejar viver na Antiguidade, à luz da lamparina, em vez de celebrar as melhorias de infraestrutura do país. Em audiência pública na Câmara dos Deputados, disse: “Nasci e me criei às margens do rio Madeira, um rio caudaloso, mas com água extremamente barrenta, e me criei tomando água do rio Madeira. E, para se tomar água, tinha que coar e ficava quatro dedos de barro no coador. Estou vivo”. (Audiência pública realizada no dia 16/5/2012, na Câmara dos Deputados)
Contradição
No século XXI, a sociedade busca se organizar para conquistar políticas públicas emancipatórias, de superação das desigualdades sociais, raciais, étnicas e de gênero. Não cabe a reprodução do clientelismo, do patrimonialismo, do favor como instrumento de manutenção das relações de dominação. Não há espaço para a continuidade da existência das práticas de dominação e de exploração da mão de obra no Brasil contemporâneo. No limite do descumprimento das normas trabalhistas ou do respeito à dignidade humano, não há justificativa para a ocorrência de trabalho escravo no Brasil.
Não cabe a reprodução do clientelismo, do patrimonialismo, do favor como instrumento de manutenção das relações de dominação
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Segundo o Ministério do Trabalho e do Emprego, de 1995 a 2012, 44 mil trabalhadores foram resgatados de condições análogas à de trabalho escravo, predominantemente no meio rural e nas propriedades localizadas na Amazônia Legal. Nas atividades de pecuária, carvoaria, silvicultura, canavieira e madeireira, residem a maioria das ocorrências de trabalho escravo nas propriedades rurais. Esta é a contradição para a qual chamamos a atenção: no Brasil rural contemporâneo, a convivência das práticas análogas às de trabalho escravo lado a lado com o que se conhece de mais tecnológico, avançado, moderno.
A Superintendência Regional de Trabalho e Emprego do Tocantins (SRTE/TO) libertou 56 pessoas de condições análogas à escravidão da Fazenda Água Amarela, em Araguatins (TO). A área reflorestada de eucaliptos, que também abrigava 99 fornos de carvão vegetal, estava sendo explorada pela RPC Energética. De acordo com apurações da fiscalização trabalhista, ainda que registrada em nome de um “laranja”, a empresa pertence a Paulo Alexandre Bernardes da Silva Júnior e André Luiz de Castro Abreu, irmão da senadora Kátia Abreu (PSD-TO), liderança ruralista que também é presidente da Confederação de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).
O trabalho escravo existe, é inegável e se configura como uma aberração nas sociedades modernas. Ao menos um ruralista admite sua existência. O deputado federal Giovanni Queiroz, do PDT paraense, confirma a ocorrência de escravagistas dentre os fazendeiros, conforme afirmou no diálogo com uma das convidadas: “Eu posso dizer à senhora e afirmar que tem escravagista, sim, no nosso meio. Nós os abominamos e não aliviamos para nenhum deles, mas é muito menos do que na cidade”.(Audiência pública realizada no dia 27/6/2012, na Câmara dos Deputados)
Negação
Por fim, confirmada a prática escravagista em pleno século XXI, a bancada ruralista segue negando sua ocorrência e responsabilizando os fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego por exageros e arbitrariedade. É a desconstrução da ideia de dominação social e da exploração da mão de obra, Agora, a responsabilidade é do marco legal trabalhista. Como se o Brasil não tivesse evoluído na sua conduta republicana, estatal e no seu regime democrático. O deputado Valdir Colatto, do PMDB paranaense, deve crer que o fiscal do trabalho está dotado de poder supremo, pois acredita que “com certeza a ditadura da fiscalização está inviabilizando o Brasil”. (Audiência pública realizada no dia 27/6/2012, na Câmara dos Deputados)
Afora a notável capacidade de reinventar os argumentos para negar a existência do trabalho escravo, os deputados que compõem a bancada ruralista conseguiram, na CPI do Trabalho Escravo, inviabilizar os procedimentos de investigação das cadeias produtivas que empregam trabalhadores em condições análogas às de escravo. Eles distorcem os fatos e insistem na tese da inadequação das leis trabalhistas, além de desprezarem a necessidade de os trabalhadores disporem de condições de alojamento adequadas e outras condições dignas para exercerem o trabalho.
De modo geral, os trabalhadores brasileiros conquistaram direitos no que concerne à proteção no trabalho, à qualidade dos alojamentos e refeitórios, vestuários, jornada de trabalho, transporte e direitos. Tudo isso é festejado pelo conjunto das organizações sindicais de trabalhadores. Mas os ruralistas avaliam essas condições como exageradas e desnecessárias.
O deputado Homero Pereira, do PSD mato-grossense, líder da Frente Parlamentar da Agropecuária, expressa sua opinião sobre esse aspecto, provavelmente desejando que os trabalhadores e os animais não sejam distinguidos na sua existência: “O cidadão não pode mais almoçar, pegar o seu prato e comer debaixo de uma mangueira, porque se chegar lá um fiscal…Ele pode até estar com o dono da propriedade; chegou o fiscal lá e já vai dizer que aquilo é trabalho escravo, porque ele tem que ter um refeitório com azulejo, com ar-condicionado. Isso é um absurdo”. (Audiência pública realizada no dia 28/3/2012, na Câmara dos Deputados)
Confirmada a prática escravagista em pleno século XXI, a bancada ruralista segue negando sua ocorrência e responsabilizando os fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego por exageros e arbitrariedade
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O discurso da modernidade, da pujança do agronegócio que emerge rompendo as fronteiras agrícolas não se articula com o fato de haver empregadores escravagistas, que negam a existência da exploração do trabalhador e da privação de seus direitos.
Encerrando este breve ensaio sobre a conduta dos ruralistas e sua representação na Câmara dos Deputados, apenas confirmamos a roupagem atual da Casa Grande, travestida na modernidade, na tecnologia e no comportamento difuso da democracia representativa.
A CPI do Trabalho Escravo prestou o serviço público de evidenciar e notabilizar o conservadorismo ideológico dos ruralistas, a truculência na lida com os trabalhadores, o preconceito enraizado desde os senhores de engenho, mutantes históricos, que se apresentam como líderes de uma classe dominante retrógrada.
Apesar de a disputa ideológica travada no sistema capitalista não ser exatamente uma novidade, chama a atenção a negação da verdade, ainda mais por representantes da população que deveriam honrar seus mandatos públicos e se somar aos esforços de combate às desigualdades existentes no Brasil.
* Assessor-técnico da liderança do PT na Câmara dos Deputados
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1 A CPI do Trabalho Escravo foi instalada em 9/02/2012, com o objetivo de investigar a exploração do trabalho escravo ou análogo ao trabalho escravo, em atividades rurais e urbanas, em todo o território nacional.
2 SCHARWZ, R. Ao vencedor, as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1992.
3 WEFFORT, F. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
4 JANOTTI, M. de L. M. O Coronelismo, uma política de compromissos. São Paulo: Brasiliense, 1989.
2 SCHARWZ, R. Ao vencedor, as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1992.
3 WEFFORT, F. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
4 JANOTTI, M. de L. M. O Coronelismo, uma política de compromissos. São Paulo: Brasiliense, 1989.
do Blog do MST
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